Eu gosto de ter dois empregos. Gosto de trabalhar em um deles pela manhã, almoçar, e gosto, igualmente, do outro emprego. O que eu não gosto é de ir para o outro emprego, que fica do outro lado da cidade. O que eu não gosto é de esperar no ponto de ônibus (especialmente nos dias quentes) pra pegar o transporte público lotado e suar enquanto me encaminho para mais seis horas de trabalho. Percebi que não gosto dessa transição. Me cansa. Os dois trabalhos até que não.
O mais difícil são as transições.
Não é de fato o término do relacionamento, mas o período de transição, que consiste no período entre os dois extremos de ainda estar apaixonado e ter ocupado o coração com um novo amor. A espera. O autocontrole para não mandar mensagens implorando a volta.
Não é o fato de ter se mudado de cidade. Mas o período de transição, que consiste no período entre os dois extremos de não estar adaptado aos nomes das ruas e ser conhecido pelo garçom do bar da esquina da sua casa.
São as transições que complicam tudo, este período entre duas coisas relativamente estáveis. O período que pode ser definido como “ainda-não”. As semanas seguintes que se seguem às perdas: do ser amado, do emprego, do amigo que foi morar na Europa. Por isso é no entardecer que as pessoas relatam sentir as piores angústias, crises de pânico e ataques de ansiedade. Porque o entardecer é a expressão literal da transição: é o quase-noite e ainda-dia. Temos de suportá-lo, diariamente.
Assim como eu escrevo enquanto estou no ônibus, passando pelos mesmos caminhos de sempre, de uma cidade que já conheço (já reparou como nunca enxergamos como novidade um passeio de ônibus dentro da própria cidade?): trânsito. Transitoriedade. Espera em movimento, porque o tempo nunca para.
Contraditoriamente, são nos períodos de transição que a maioria das coisas nascem – nós mesmos nos descobrimos, nos revelamos. “Não pensei que fosse tão forte”, “nunca imaginei que suportaria”, são frases conhecidas, que já dissemos e/ou escutamos em períodos de transição. Tudo isso porque acabamos por notar uma espécie de força interior que nos abriga nesses momentos. Na transição estamos sozinhos, afastados dos milhares de barulhos e demandas do mundo e das pessoas que nos cercam. E é só assim que podemos (nos) escutar.
A transição nos faz olhar pra dentro. Porque temos que prestar atenção na estrada quando nunca estivemos nela antes. Por isso a maioria dos acidentes acontecem em estradas já conhecidas pelos motoristas. Ligamos o piloto automático e tocamos em frente, sem perceber as sensações, sentimentos e palpitações que o nosso coração cansado sofre.
As transições são incômodas, bem sei. É a mudança recém-feita, são as caixas espalhadas pela sala, o reboco ainda úmido, o aviso de “não toque, tinta fresca” no corrimão. É justamente nesses momentos que podemos escolher uma nova rota, uma nova rua pra chegar ao mesmo destino, um caminho diferente pra lidar com um antigo sintoma.
Na transição somos obrigados a fazer novas redes sinápticas, novas rotas gastronômicas e reconfigurações necessárias à sobrevivência da espécie. Darwin. Somos todos sobreviventes das transições: não dos fins ou dos inícios, mas dos meios. Se sobrevivemos aos infinitos “meios” que a vida nos proporcionou até hoje, é bem provável que toleremos as demais esperas, os demais fins, e assim teremos forças para os inícios, resplandecentes por si só. Bem-ditas sejam as pontes, benditos sejam os momentos em suspenso, bem-vindo o “ainda-não” que a vida impõe. Porque é justamente aí que podemos re-nascer.
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